domingo, 4 de setembro de 2011

Uma nova visão de CLEÓPATRA



A História nunca está feita, pelo menos não há uma única História ou uma História definitiva. Por exemplo, Cleópatra surge-nos agora como «uma rainha sagaz e astuta, uma estadista incomparável»





Um livro que desfaz os mitos da grega que foi a última rainha do Egito.
Uma pesquisa aturada e rigorosa que acaba de vencer o prestigiado PEN para biografia







RESTAURAR CLEÓPATRA
Expresso/Atual, 2011.Set.03 Luísa Meireles (Texto)
Em primeiro lugar, esqueça os mitos – a estonteante beleza, o insaciável apetite sexual, a serpente que a matou e até que era egípcia. Cleópatra não era nada disso. Foi o (a) últi­mo faraó do Egito, é certo, mas era tão egípcia como Elizabeth Taylor, que há 50 anos a imortalizou no cinema com os seus olhos violeta. Cleópatra VII, a "Mãe de Reis, Rainha de Reis, a Mais Jovem Deu­sa", como foi conhecida no seu apogeu, era, afinal, grega, última descendente da dinastia de 300 anos dos Ptolomeus, o primeiro dos quais havia sido um general macedónio, íntimo de Alexandre Magno, que reivindicou o Egito.
Cleópatra era uma rainha sagaz e astuta, uma estadista incomparávelNão era bela e homens teve apenas dois – não por acaso os dois maiores comandantes romanos da sua época, Júlio César e Marco António. Deu um filho a um e três a outro. Tal como no filme, amava a pompa e manipulava ritos e tradições. Porque foi, sobretudo, uma política refinadíssima, uma rainha sagaz e astuta, um estratego de primeira água e uma estadista incomparável que reconheceu por fim a derrota política, suicidando-se. Mas não com uma serpente.
"Cleópatra" (Civilização Editores), que significa "glória da sua pátria" em grego, é o último livro da americana Stacy Schiff, que já ganhou um Pulitzer com a biografia de Vera Nabokov e foi nomeada para outro com a de Benjamim Franklin. Desta vez pre­senteia-nos com uma pesquisa histórica aturada, ri­gorosa e nunca aborrecida ou fastidiosa. Não corre o risco de pôr palavras na boca da mulher mais famosa da Antiguidade, que morreu 30 anos antes de nascer Jesus Cristo. Até porque, como diz Stacy, dela mes­ma só se conhece uma palavra: Ginesthoi. Quer dizer "Faça-se" e ela, ou o seu escriba por ela, escreveu-a num papiro. Não por acaso, era uma ordem.
Restaurar Cleópatra é decapar um mito incrustado, diz Stacy. Percebê-la é entender como a História antiga foi escrita, por quem, para quem e porquê. Na Antiguidade não havia histórias simples ou desprovi­das de verniz, porque a ideia era deslumbrar: O tem­po era de personalidades desmedidas e a História, já se sabe, é escrita pelos vencedores. A autora também não quis fazer uma revisão 'feminista' da História. Acontece que a de Cleópatra foi feita por homens, a maioria deles romanos, que viveram muitos anos de­pois da sua morte e que em parte a detestaram.
A rainha egípcia – a mulher mais rica do mundo do seu tempo – era-lhes estranha e ameaçadora. Co­mo lembra o poeta grego Eurípedes, se as mulheres inteligentes são perigosas, uma mulher rica e inteli­gente é frequentemente intolerável, especialmente em Roma onde, sublinha Stacy, as mulheres goza­vam dos mesmos direitos que as crianças e as gali­nhas. Num arroubo que tem mais de verdade do que de feminismo, escreve: "Cleópatra perturbou mais como sábia do que como sedutora. É melhor ser fa­talmente atraente do que fatalmente inteligente."
O primeiro homem que começou a moldar-lhe a história foi aquele que a derrotou, Octávio ou Otavia­no, a quem viu uma única vez na sua última semana de vida. Haveria de chamar-se depois César Augus­to. Foi por causa do seu triunfo sobre ela que este Augusto se "apoderou do mês de agosto, dando-lhe o seu próprio nome – foi a 10 de agosto de 30 a.C. que ela morreu e a 31 de agosto que Octávio anexou for­malmente o Egito, a pérola cobiçada do mundo anti­go e até então reino vassalo do poder de Roma. Octá­vio reiniciou o relógio a 1 de agosto, data em que entrou em Alexandria, a "primeira cidade da civiliza­ção", um paraíso erudito e folião, vibrante de negó­cios, que fazia Roma parecer uma suja e escura cida­de de província. Nesse tempo não havia ainda Coli­seu, nem Panteão, nem termas de Caracala. As úni­cas estruturas dignas de registo eram o Teatro de Pompeu e o Fórum de César.
Dos tempos de Cleópatra quase nada subsiste. A fantástica cidade de Alexandria, com uma colunata a todo o comprimento da cidade e maravilhas mecâ­nicas, elevadores hidráulicos, máquinas de moedas e estátuas de olhos a piscar, jaz seis metros abaixo do chão. A sua mítica biblioteca ardeu para sempre, o farol não mais existe, o museu desapareceu. O pa­lácio de Cleópatra deslizou para o Mar Mediterrâ­neo, o porto já nada tem a ver com o desses tempos. Não se sabe onde está o seu túmulo, apesar das mui­tas teorias. Até o Nilo mudou de curso. A deusa Ísis que Cleópatra reincarnou foi substituída pela mais abrangente Virgem Maria.
Mas voltemos a Cleópatra ou ao retrato que Stacy tem o cuidado de classificar como aproximado, escrupulosa em referir as fontes históricas: Lucano, Dio, Apiano, Josefo, Suetónio e muitos outros, mas sobretudo Plutarco, o mais próximo da rainha egíp­cia. Era grego e escreveu 100 anos após a sua morte – recordando os testemunhos que lhe relatara o avô, amigo de um médico contemporâneo de Cleópatra que chegou a visitar as cozinhas do palácio em dia de magnificente repasto, em que se cozinhavam 10 java­lis para 12 convivas – quiçá servido na sua extraordi­nária baixela, 300 toneladas de ouro!
É Plutarco quem diz, lembrando o avô, que ela não era de "extraordinária beleza". Pelos vistos, e a crer no mito, o tempo melhorou-lhe o aspeto, por­que o eco da sua beleza foi crescendo à medida que passaram os séculos. O que revelam as poucas moe­das que subsistem das que mandou cunhar (as pri­meiras a valer pelo seu valor facial e não do metal incorporado, o que lhe rendeu não pouco lucro) é uma mulher de nariz aquilino. O mesmo traço que subsiste num busto desenterrado 1800 anos depois entre ruínas romanas, a par de uns lábios carnudos, um queixo afiado e proeminente, olhos grandes e encovados. E um penteado que a tomou famosa: de­zenas de pequeninas tranças presas num carrapito e caracóis na testa.
Depois de um começo aventuroso, o reinado de Cleópatra não conheceu revoltas. Era magistrada, suma sacerdotisa, rainha e deusa
A sua pele seria do tom do mel e era sem dúvida pequena. Quando do seu primeiro encontro com Cé­sar, aos 21 anos (já reinava há três e estava proscrita pelo irmão Ptolomeu), foi transportada ao ombro do seu fiel escravo Apolodoro dentro de um saco onde era costume enfiar rolos de papiro – o desenrolar do tapete foi um bom truque de efeito cinematográfico. Contrariando a imaginação masculina (e cinco sécu­los de História de Arte) de lá saiu completamente vestida, presumivelmente com uma longa túnica de linho, justa e sem mangas, e a tradicional fita branca na testa, que só ela, como governante, tinha direito a usar. E terá sido assim que entrou na História.
César deve ter ficado impressionado. Plutarco realça que era o impacto da presença de Cleópatra que a tornava irresistível e sedutora. A sua voz aveludada e a sua oratória, o seu sentido de humor e inteligência cativavam qualquer audiência. Falava nove línguas, incluindo o hebraico e o troglo­dita, uma língua que Heródoto dizia "soar a guin­chos de morcego". E sobretudo dominava o egípcio – terá sido a primeira e única dos Ptolomeus a dar-se ao trabalho de aprender a língua dos sete mi­lhões de pessoas que governava. Depois de um come­ço aventuroso, o seu reinado não conheceu revoltas e Alexandria floresceu. Era magistrada, suma sacer­dotisa, rainha e deusa. A que acrescentava, numa base quotidiana, as tarefas de diretora-executiva. A organização ptolemaica do poder era tão pormenori­zada que costuma comparar-se à soviética – salva­guardadas as devidas proporções, entenda-se.
Se amou César e, depois dele, Marco António, não se sabe. Política, negócios e cama, dir-se-á, con­fundiam-se naqueles tempos. Mas deu um filho a César que este reconheceu (Cesarião) e que Octávio convenientemente mandou assassinar após a morte da mãe – era tudo o que ele não queria, um rival, filho direto do seu pai adotivo e para mais da linha­gem dos deuses de ambos os lados do Mediterrâneo. E outros três a Marco António, com quem mantém uma relação sólida durante mais de 10 anos. Juntos, haveriam de fundar em Alexandria uma Sociedade dos Viventes Inimitáveis para puro divertimento ­– tê-lo-iam feito se não se amassem? Os filhos acaba­riam por ser criados pela ex-mulher de Marco Antó­nio, que era simultaneamente irmã do seu algoz. Grandeza deste? Não terá sido isso que impediu Oc­távio de os fazer desfilar (juntamente com a efígie da mãe) no seu grande cortejo da vitória, em Roma.
E que quis Cleópatra? Com César terá procurado garantir o trono, afastando os irmãos-consorte, e ga­nhar a paz para o seu reino, sistematicamente envolvido nas guerras romanas. Não terá tido tempo para mais. Quando César é assassinado, está ela em Roma com o filho bebé e grávida de outro, que vem a per­der. Com Marco António houve algo mais, talvez o sonho de um grande império, governado em conjun­to com o triúnviro (o título de Marco António, que governava Roma juntamente com Octávio e Lépido).
A verdade é que financiou as guerras de um e de outro, sendo que na última batalha – a que Marco António travou com Octávio – foi parte interessada e, mais do que isso, o pretexto dela. Cruzou-se em má hora na guerra civil entre os dois: Octávio preci­sava da "estrangeira que queria conquistar Roma" para aliciar os homens e combater Marco António. Pois não era um supremo insulto figurar, a par des­te, numa moeda romana? Suprema ironia para a su­prema rainha: António não podia ganhar a guerra sem ela. Octávio não podia travá-la.
Perdeu-a, como se sabe, na batalha naval de Ácio. Marco António não aguentou a derrota e acabou por suicidar-se um ano depois, com Octávio já em Ale­xandria. Antes disso, a Sociedade dos Viventes Inimi­táveis ainda foi substituída por outra, denominada Companheiros até à Morte. Cleópatra tentou uma saída para a Índia, e outra para Espanha, tentando improvisar soluções engenhosas. Terá sido nessa al­tura que a lenda lhe aponta o hábito de experimen­tar venenos eficazes e indolores em prisioneiros.
Cleópatra acabou por ficar no Egito. Octávio que­ria-a viva mas três dias antes da sua partida ela man­dou-lhe um recado, pedindo-lhe para ser enterrada junto de Marco António, que morrera nos seus bra­ços dias antes. Morta, estava serena e ataviada com todos os seus atributos de poder. Não havia víbora alguma – esta só se insinua na História mais tarde, dentro de um cesto de figos. Nem Dio, nem Plutar­co, nem Estrabão ficaram convencidos disso. Como diz Stacy: "Quando uma mulher se alia a uma serpen­te, há algures uma tempestade moral à espreita."
À data da sua morte, Cleópatra tinha 39 anos e governara durante quase 22. O fim de Cleópatra foi o fim de uma era. Da sua dinastia, sem dúvida, de Alexandria, do Egito enquanto tal, transformado do­ravante em província de Roma. Mas enquanto vi­veu, estendeu o seu poder a limites territoriais ini­magináveis para o seu reino, ao ponto de convencer o seu povo de que o crepúsculo era uma alvorada.
Em Roma, entretanto, feneciam os 400 anos da República com a ascensão de Octávio. Vingativo, ha­via de proibir por decreto que se voltassem a juntar os nomes de Marco e António numa mesma pessoa. Mas aproveitou-se bem dos fundos da soberana, que injetou na economia, fazendo subir os preços, tão vastos eram. Roma conheceu então uma verdadeira egiptomania. Depois de ler o deslumbrante livro de Stacy, percebe-se como Cleópatra foi a mulher mais famosa que não conhecemos. Até agora. A