
A História nunca está feita, pelo menos não há uma única História ou uma História definitiva. Por exemplo, Cleópatra surge-nos agora como «uma rainha sagaz e astuta, uma estadista incomparável»
Um livro que desfaz os mitos da grega que foi a última rainha do Egito.
Uma pesquisa aturada e rigorosa que acaba de vencer o prestigiado PEN para biografia
RESTAURAR CLEÓPATRA
Expresso/Atual, 2011.Set.03 Luísa Meireles (Texto)
Em primeiro lugar, esqueça os mitos – a estonteante beleza, o insaciável apetite sexual, a serpente que a matou e até que era egípcia. Cleópatra não era nada disso. Foi o (a) último faraó do Egito, é certo, mas era tão egípcia como Elizabeth Taylor, que há 50 anos a imortalizou no cinema com os seus olhos violeta. Cleópatra VII, a "Mãe de Reis, Rainha de Reis, a Mais Jovem Deusa", como foi conhecida no seu apogeu, era, afinal, grega, última descendente da dinastia de 300 anos dos Ptolomeus, o primeiro dos quais havia sido um general macedónio, íntimo de Alexandre Magno, que reivindicou o Egito.
Cleópatra era uma rainha sagaz e astuta, uma estadista incomparávelNão era bela e homens teve apenas dois – não por acaso os dois maiores comandantes romanos da sua época, Júlio César e Marco António. Deu um filho a um e três a outro. Tal como no filme, amava a pompa e manipulava ritos e tradições. Porque foi, sobretudo, uma política refinadíssima, uma rainha sagaz e astuta, um estratego de primeira água e uma estadista incomparável que reconheceu por fim a derrota política, suicidando-se. Mas não com uma serpente.
"Cleópatra" (Civilização Editores), que significa "glória da sua pátria" em grego, é o último livro da americana Stacy Schiff, que já ganhou um Pulitzer com a biografia de Vera Nabokov e foi nomeada para outro com a de Benjamim Franklin. Desta vez presenteia-nos com uma pesquisa histórica aturada, rigorosa e nunca aborrecida ou fastidiosa. Não corre o risco de pôr palavras na boca da mulher mais famosa da Antiguidade, que morreu 30 anos antes de nascer Jesus Cristo. Até porque, como diz Stacy, dela mesma só se conhece uma palavra: Ginesthoi. Quer dizer "Faça-se" e ela, ou o seu escriba por ela, escreveu-a num papiro. Não por acaso, era uma ordem.
Restaurar Cleópatra é decapar um mito incrustado, diz Stacy. Percebê-la é entender como a História antiga foi escrita, por quem, para quem e porquê. Na Antiguidade não havia histórias simples ou desprovidas de verniz, porque a ideia era deslumbrar: O tempo era de personalidades desmedidas e a História, já se sabe, é escrita pelos vencedores. A autora também não quis fazer uma revisão 'feminista' da História. Acontece que a de Cleópatra foi feita por homens, a maioria deles romanos, que viveram muitos anos depois da sua morte e que em parte a detestaram.
A rainha egípcia – a mulher mais rica do mundo do seu tempo – era-lhes estranha e ameaçadora. Como lembra o poeta grego Eurípedes, se as mulheres inteligentes são perigosas, uma mulher rica e inteligente é frequentemente intolerável, especialmente em Roma onde, sublinha Stacy, as mulheres gozavam dos mesmos direitos que as crianças e as galinhas. Num arroubo que tem mais de verdade do que de feminismo, escreve: "Cleópatra perturbou mais como sábia do que como sedutora. É melhor ser fatalmente atraente do que fatalmente inteligente."
O primeiro homem que começou a moldar-lhe a história foi aquele que a derrotou, Octávio ou Otaviano, a quem viu uma única vez na sua última semana de vida. Haveria de chamar-se depois César Augusto. Foi por causa do seu triunfo sobre ela que este Augusto se "apoderou do mês de agosto, dando-lhe o seu próprio nome – foi a 10 de agosto de 30 a.C. que ela morreu e a 31 de agosto que Octávio anexou formalmente o Egito, a pérola cobiçada do mundo antigo e até então reino vassalo do poder de Roma. Octávio reiniciou o relógio a 1 de agosto, data em que entrou em Alexandria, a "primeira cidade da civilização", um paraíso erudito e folião, vibrante de negócios, que fazia Roma parecer uma suja e escura cidade de província. Nesse tempo não havia ainda Coliseu, nem Panteão, nem termas de Caracala. As únicas estruturas dignas de registo eram o Teatro de Pompeu e o Fórum de César.
Dos tempos de Cleópatra quase nada subsiste. A fantástica cidade de Alexandria, com uma colunata a todo o comprimento da cidade e maravilhas mecânicas, elevadores hidráulicos, máquinas de moedas e estátuas de olhos a piscar, jaz seis metros abaixo do chão. A sua mítica biblioteca ardeu para sempre, o farol não mais existe, o museu desapareceu. O palácio de Cleópatra deslizou para o Mar Mediterrâneo, o porto já nada tem a ver com o desses tempos. Não se sabe onde está o seu túmulo, apesar das muitas teorias. Até o Nilo mudou de curso. A deusa Ísis que Cleópatra reincarnou foi substituída pela mais abrangente Virgem Maria.
Mas voltemos a Cleópatra ou ao retrato que Stacy tem o cuidado de classificar como aproximado, escrupulosa em referir as fontes históricas: Lucano, Dio, Apiano, Josefo, Suetónio e muitos outros, mas sobretudo Plutarco, o mais próximo da rainha egípcia. Era grego e escreveu 100 anos após a sua morte – recordando os testemunhos que lhe relatara o avô, amigo de um médico contemporâneo de Cleópatra que chegou a visitar as cozinhas do palácio em dia de magnificente repasto, em que se cozinhavam 10 javalis para 12 convivas – quiçá servido na sua extraordinária baixela, 300 toneladas de ouro!
É Plutarco quem diz, lembrando o avô, que ela não era de "extraordinária beleza". Pelos vistos, e a crer no mito, o tempo melhorou-lhe o aspeto, porque o eco da sua beleza foi crescendo à medida que passaram os séculos. O que revelam as poucas moedas que subsistem das que mandou cunhar (as primeiras a valer pelo seu valor facial e não do metal incorporado, o que lhe rendeu não pouco lucro) é uma mulher de nariz aquilino. O mesmo traço que subsiste num busto desenterrado 1800 anos depois entre ruínas romanas, a par de uns lábios carnudos, um queixo afiado e proeminente, olhos grandes e encovados. E um penteado que a tomou famosa: dezenas de pequeninas tranças presas num carrapito e caracóis na testa.
Depois de um começo aventuroso, o reinado de Cleópatra não conheceu revoltas. Era magistrada, suma sacerdotisa, rainha e deusa
A sua pele seria do tom do mel e era sem dúvida pequena. Quando do seu primeiro encontro com César, aos 21 anos (já reinava há três e estava proscrita pelo irmão Ptolomeu), foi transportada ao ombro do seu fiel escravo Apolodoro dentro de um saco onde era costume enfiar rolos de papiro – o desenrolar do tapete foi um bom truque de efeito cinematográfico. Contrariando a imaginação masculina (e cinco séculos de História de Arte) de lá saiu completamente vestida, presumivelmente com uma longa túnica de linho, justa e sem mangas, e a tradicional fita branca na testa, que só ela, como governante, tinha direito a usar. E terá sido assim que entrou na História.
César deve ter ficado impressionado. Plutarco realça que era o impacto da presença de Cleópatra que a tornava irresistível e sedutora. A sua voz aveludada e a sua oratória, o seu sentido de humor e inteligência cativavam qualquer audiência. Falava nove línguas, incluindo o hebraico e o troglodita, uma língua que Heródoto dizia "soar a guinchos de morcego". E sobretudo dominava o egípcio – terá sido a primeira e única dos Ptolomeus a dar-se ao trabalho de aprender a língua dos sete milhões de pessoas que governava. Depois de um começo aventuroso, o seu reinado não conheceu revoltas e Alexandria floresceu. Era magistrada, suma sacerdotisa, rainha e deusa. A que acrescentava, numa base quotidiana, as tarefas de diretora-executiva. A organização ptolemaica do poder era tão pormenorizada que costuma comparar-se à soviética – salvaguardadas as devidas proporções, entenda-se.
Se amou César e, depois dele, Marco António, não se sabe. Política, negócios e cama, dir-se-á, confundiam-se naqueles tempos. Mas deu um filho a César que este reconheceu (Cesarião) e que Octávio convenientemente mandou assassinar após a morte da mãe – era tudo o que ele não queria, um rival, filho direto do seu pai adotivo e para mais da linhagem dos deuses de ambos os lados do Mediterrâneo. E outros três a Marco António, com quem mantém uma relação sólida durante mais de 10 anos. Juntos, haveriam de fundar em Alexandria uma Sociedade dos Viventes Inimitáveis para puro divertimento – tê-lo-iam feito se não se amassem? Os filhos acabariam por ser criados pela ex-mulher de Marco António, que era simultaneamente irmã do seu algoz. Grandeza deste? Não terá sido isso que impediu Octávio de os fazer desfilar (juntamente com a efígie da mãe) no seu grande cortejo da vitória, em Roma.
E que quis Cleópatra? Com César terá procurado garantir o trono, afastando os irmãos-consorte, e ganhar a paz para o seu reino, sistematicamente envolvido nas guerras romanas. Não terá tido tempo para mais. Quando César é assassinado, está ela em Roma com o filho bebé e grávida de outro, que vem a perder. Com Marco António houve algo mais, talvez o sonho de um grande império, governado em conjunto com o triúnviro (o título de Marco António, que governava Roma juntamente com Octávio e Lépido).
A verdade é que financiou as guerras de um e de outro, sendo que na última batalha – a que Marco António travou com Octávio – foi parte interessada e, mais do que isso, o pretexto dela. Cruzou-se em má hora na guerra civil entre os dois: Octávio precisava da "estrangeira que queria conquistar Roma" para aliciar os homens e combater Marco António. Pois não era um supremo insulto figurar, a par deste, numa moeda romana? Suprema ironia para a suprema rainha: António não podia ganhar a guerra sem ela. Octávio não podia travá-la.
Perdeu-a, como se sabe, na batalha naval de Ácio. Marco António não aguentou a derrota e acabou por suicidar-se um ano depois, com Octávio já em Alexandria. Antes disso, a Sociedade dos Viventes Inimitáveis ainda foi substituída por outra, denominada Companheiros até à Morte. Cleópatra tentou uma saída para a Índia, e outra para Espanha, tentando improvisar soluções engenhosas. Terá sido nessa altura que a lenda lhe aponta o hábito de experimentar venenos eficazes e indolores em prisioneiros.
Cleópatra acabou por ficar no Egito. Octávio queria-a viva mas três dias antes da sua partida ela mandou-lhe um recado, pedindo-lhe para ser enterrada junto de Marco António, que morrera nos seus braços dias antes. Morta, estava serena e ataviada com todos os seus atributos de poder. Não havia víbora alguma – esta só se insinua na História mais tarde, dentro de um cesto de figos. Nem Dio, nem Plutarco, nem Estrabão ficaram convencidos disso. Como diz Stacy: "Quando uma mulher se alia a uma serpente, há algures uma tempestade moral à espreita."
À data da sua morte, Cleópatra tinha 39 anos e governara durante quase 22. O fim de Cleópatra foi o fim de uma era. Da sua dinastia, sem dúvida, de Alexandria, do Egito enquanto tal, transformado doravante em província de Roma. Mas enquanto viveu, estendeu o seu poder a limites territoriais inimagináveis para o seu reino, ao ponto de convencer o seu povo de que o crepúsculo era uma alvorada.
Em Roma, entretanto, feneciam os 400 anos da República com a ascensão de Octávio. Vingativo, havia de proibir por decreto que se voltassem a juntar os nomes de Marco e António numa mesma pessoa. Mas aproveitou-se bem dos fundos da soberana, que injetou na economia, fazendo subir os preços, tão vastos eram. Roma conheceu então uma verdadeira egiptomania. Depois de ler o deslumbrante livro de Stacy, percebe-se como Cleópatra foi a mulher mais famosa que não conhecemos. Até agora. A
Expresso/Atual, 2011.Set.03 Luísa Meireles (Texto)
Em primeiro lugar, esqueça os mitos – a estonteante beleza, o insaciável apetite sexual, a serpente que a matou e até que era egípcia. Cleópatra não era nada disso. Foi o (a) último faraó do Egito, é certo, mas era tão egípcia como Elizabeth Taylor, que há 50 anos a imortalizou no cinema com os seus olhos violeta. Cleópatra VII, a "Mãe de Reis, Rainha de Reis, a Mais Jovem Deusa", como foi conhecida no seu apogeu, era, afinal, grega, última descendente da dinastia de 300 anos dos Ptolomeus, o primeiro dos quais havia sido um general macedónio, íntimo de Alexandre Magno, que reivindicou o Egito.
Cleópatra era uma rainha sagaz e astuta, uma estadista incomparávelNão era bela e homens teve apenas dois – não por acaso os dois maiores comandantes romanos da sua época, Júlio César e Marco António. Deu um filho a um e três a outro. Tal como no filme, amava a pompa e manipulava ritos e tradições. Porque foi, sobretudo, uma política refinadíssima, uma rainha sagaz e astuta, um estratego de primeira água e uma estadista incomparável que reconheceu por fim a derrota política, suicidando-se. Mas não com uma serpente.
"Cleópatra" (Civilização Editores), que significa "glória da sua pátria" em grego, é o último livro da americana Stacy Schiff, que já ganhou um Pulitzer com a biografia de Vera Nabokov e foi nomeada para outro com a de Benjamim Franklin. Desta vez presenteia-nos com uma pesquisa histórica aturada, rigorosa e nunca aborrecida ou fastidiosa. Não corre o risco de pôr palavras na boca da mulher mais famosa da Antiguidade, que morreu 30 anos antes de nascer Jesus Cristo. Até porque, como diz Stacy, dela mesma só se conhece uma palavra: Ginesthoi. Quer dizer "Faça-se" e ela, ou o seu escriba por ela, escreveu-a num papiro. Não por acaso, era uma ordem.
Restaurar Cleópatra é decapar um mito incrustado, diz Stacy. Percebê-la é entender como a História antiga foi escrita, por quem, para quem e porquê. Na Antiguidade não havia histórias simples ou desprovidas de verniz, porque a ideia era deslumbrar: O tempo era de personalidades desmedidas e a História, já se sabe, é escrita pelos vencedores. A autora também não quis fazer uma revisão 'feminista' da História. Acontece que a de Cleópatra foi feita por homens, a maioria deles romanos, que viveram muitos anos depois da sua morte e que em parte a detestaram.
A rainha egípcia – a mulher mais rica do mundo do seu tempo – era-lhes estranha e ameaçadora. Como lembra o poeta grego Eurípedes, se as mulheres inteligentes são perigosas, uma mulher rica e inteligente é frequentemente intolerável, especialmente em Roma onde, sublinha Stacy, as mulheres gozavam dos mesmos direitos que as crianças e as galinhas. Num arroubo que tem mais de verdade do que de feminismo, escreve: "Cleópatra perturbou mais como sábia do que como sedutora. É melhor ser fatalmente atraente do que fatalmente inteligente."
O primeiro homem que começou a moldar-lhe a história foi aquele que a derrotou, Octávio ou Otaviano, a quem viu uma única vez na sua última semana de vida. Haveria de chamar-se depois César Augusto. Foi por causa do seu triunfo sobre ela que este Augusto se "apoderou do mês de agosto, dando-lhe o seu próprio nome – foi a 10 de agosto de 30 a.C. que ela morreu e a 31 de agosto que Octávio anexou formalmente o Egito, a pérola cobiçada do mundo antigo e até então reino vassalo do poder de Roma. Octávio reiniciou o relógio a 1 de agosto, data em que entrou em Alexandria, a "primeira cidade da civilização", um paraíso erudito e folião, vibrante de negócios, que fazia Roma parecer uma suja e escura cidade de província. Nesse tempo não havia ainda Coliseu, nem Panteão, nem termas de Caracala. As únicas estruturas dignas de registo eram o Teatro de Pompeu e o Fórum de César.
Dos tempos de Cleópatra quase nada subsiste. A fantástica cidade de Alexandria, com uma colunata a todo o comprimento da cidade e maravilhas mecânicas, elevadores hidráulicos, máquinas de moedas e estátuas de olhos a piscar, jaz seis metros abaixo do chão. A sua mítica biblioteca ardeu para sempre, o farol não mais existe, o museu desapareceu. O palácio de Cleópatra deslizou para o Mar Mediterrâneo, o porto já nada tem a ver com o desses tempos. Não se sabe onde está o seu túmulo, apesar das muitas teorias. Até o Nilo mudou de curso. A deusa Ísis que Cleópatra reincarnou foi substituída pela mais abrangente Virgem Maria.
Mas voltemos a Cleópatra ou ao retrato que Stacy tem o cuidado de classificar como aproximado, escrupulosa em referir as fontes históricas: Lucano, Dio, Apiano, Josefo, Suetónio e muitos outros, mas sobretudo Plutarco, o mais próximo da rainha egípcia. Era grego e escreveu 100 anos após a sua morte – recordando os testemunhos que lhe relatara o avô, amigo de um médico contemporâneo de Cleópatra que chegou a visitar as cozinhas do palácio em dia de magnificente repasto, em que se cozinhavam 10 javalis para 12 convivas – quiçá servido na sua extraordinária baixela, 300 toneladas de ouro!
É Plutarco quem diz, lembrando o avô, que ela não era de "extraordinária beleza". Pelos vistos, e a crer no mito, o tempo melhorou-lhe o aspeto, porque o eco da sua beleza foi crescendo à medida que passaram os séculos. O que revelam as poucas moedas que subsistem das que mandou cunhar (as primeiras a valer pelo seu valor facial e não do metal incorporado, o que lhe rendeu não pouco lucro) é uma mulher de nariz aquilino. O mesmo traço que subsiste num busto desenterrado 1800 anos depois entre ruínas romanas, a par de uns lábios carnudos, um queixo afiado e proeminente, olhos grandes e encovados. E um penteado que a tomou famosa: dezenas de pequeninas tranças presas num carrapito e caracóis na testa.
Depois de um começo aventuroso, o reinado de Cleópatra não conheceu revoltas. Era magistrada, suma sacerdotisa, rainha e deusa
A sua pele seria do tom do mel e era sem dúvida pequena. Quando do seu primeiro encontro com César, aos 21 anos (já reinava há três e estava proscrita pelo irmão Ptolomeu), foi transportada ao ombro do seu fiel escravo Apolodoro dentro de um saco onde era costume enfiar rolos de papiro – o desenrolar do tapete foi um bom truque de efeito cinematográfico. Contrariando a imaginação masculina (e cinco séculos de História de Arte) de lá saiu completamente vestida, presumivelmente com uma longa túnica de linho, justa e sem mangas, e a tradicional fita branca na testa, que só ela, como governante, tinha direito a usar. E terá sido assim que entrou na História.
César deve ter ficado impressionado. Plutarco realça que era o impacto da presença de Cleópatra que a tornava irresistível e sedutora. A sua voz aveludada e a sua oratória, o seu sentido de humor e inteligência cativavam qualquer audiência. Falava nove línguas, incluindo o hebraico e o troglodita, uma língua que Heródoto dizia "soar a guinchos de morcego". E sobretudo dominava o egípcio – terá sido a primeira e única dos Ptolomeus a dar-se ao trabalho de aprender a língua dos sete milhões de pessoas que governava. Depois de um começo aventuroso, o seu reinado não conheceu revoltas e Alexandria floresceu. Era magistrada, suma sacerdotisa, rainha e deusa. A que acrescentava, numa base quotidiana, as tarefas de diretora-executiva. A organização ptolemaica do poder era tão pormenorizada que costuma comparar-se à soviética – salvaguardadas as devidas proporções, entenda-se.
Se amou César e, depois dele, Marco António, não se sabe. Política, negócios e cama, dir-se-á, confundiam-se naqueles tempos. Mas deu um filho a César que este reconheceu (Cesarião) e que Octávio convenientemente mandou assassinar após a morte da mãe – era tudo o que ele não queria, um rival, filho direto do seu pai adotivo e para mais da linhagem dos deuses de ambos os lados do Mediterrâneo. E outros três a Marco António, com quem mantém uma relação sólida durante mais de 10 anos. Juntos, haveriam de fundar em Alexandria uma Sociedade dos Viventes Inimitáveis para puro divertimento – tê-lo-iam feito se não se amassem? Os filhos acabariam por ser criados pela ex-mulher de Marco António, que era simultaneamente irmã do seu algoz. Grandeza deste? Não terá sido isso que impediu Octávio de os fazer desfilar (juntamente com a efígie da mãe) no seu grande cortejo da vitória, em Roma.
E que quis Cleópatra? Com César terá procurado garantir o trono, afastando os irmãos-consorte, e ganhar a paz para o seu reino, sistematicamente envolvido nas guerras romanas. Não terá tido tempo para mais. Quando César é assassinado, está ela em Roma com o filho bebé e grávida de outro, que vem a perder. Com Marco António houve algo mais, talvez o sonho de um grande império, governado em conjunto com o triúnviro (o título de Marco António, que governava Roma juntamente com Octávio e Lépido).
A verdade é que financiou as guerras de um e de outro, sendo que na última batalha – a que Marco António travou com Octávio – foi parte interessada e, mais do que isso, o pretexto dela. Cruzou-se em má hora na guerra civil entre os dois: Octávio precisava da "estrangeira que queria conquistar Roma" para aliciar os homens e combater Marco António. Pois não era um supremo insulto figurar, a par deste, numa moeda romana? Suprema ironia para a suprema rainha: António não podia ganhar a guerra sem ela. Octávio não podia travá-la.
Perdeu-a, como se sabe, na batalha naval de Ácio. Marco António não aguentou a derrota e acabou por suicidar-se um ano depois, com Octávio já em Alexandria. Antes disso, a Sociedade dos Viventes Inimitáveis ainda foi substituída por outra, denominada Companheiros até à Morte. Cleópatra tentou uma saída para a Índia, e outra para Espanha, tentando improvisar soluções engenhosas. Terá sido nessa altura que a lenda lhe aponta o hábito de experimentar venenos eficazes e indolores em prisioneiros.
Cleópatra acabou por ficar no Egito. Octávio queria-a viva mas três dias antes da sua partida ela mandou-lhe um recado, pedindo-lhe para ser enterrada junto de Marco António, que morrera nos seus braços dias antes. Morta, estava serena e ataviada com todos os seus atributos de poder. Não havia víbora alguma – esta só se insinua na História mais tarde, dentro de um cesto de figos. Nem Dio, nem Plutarco, nem Estrabão ficaram convencidos disso. Como diz Stacy: "Quando uma mulher se alia a uma serpente, há algures uma tempestade moral à espreita."
À data da sua morte, Cleópatra tinha 39 anos e governara durante quase 22. O fim de Cleópatra foi o fim de uma era. Da sua dinastia, sem dúvida, de Alexandria, do Egito enquanto tal, transformado doravante em província de Roma. Mas enquanto viveu, estendeu o seu poder a limites territoriais inimagináveis para o seu reino, ao ponto de convencer o seu povo de que o crepúsculo era uma alvorada.
Em Roma, entretanto, feneciam os 400 anos da República com a ascensão de Octávio. Vingativo, havia de proibir por decreto que se voltassem a juntar os nomes de Marco e António numa mesma pessoa. Mas aproveitou-se bem dos fundos da soberana, que injetou na economia, fazendo subir os preços, tão vastos eram. Roma conheceu então uma verdadeira egiptomania. Depois de ler o deslumbrante livro de Stacy, percebe-se como Cleópatra foi a mulher mais famosa que não conhecemos. Até agora. A